“Porque
Porque os outros se mascaram mas tu não
Porque os outros usam a virtude
Para comprar o que não tem perdão.
Porque os outros têm medo mas tu não.
Porque os outros são os túmulos caiados
Onde germina calada a podridão.
Porque os outros se calam mas tu não.
Porque os outros se compram e se vendem
E os seus gestos dão sempre dividendo.
Porque os outros são hábeis mas tu não.
Porque os outros vão à sombra dos abrigos
E tu vais de mãos dadas com os perigos.
Porque os outros calculam mas tu não.”
“No Tempo Dividido e Mar Novo”, Edições Salamandra, 1985, p. 79”
Escolhi um poema da Sophia de Mello Breyner Anderson porque li os seus livros para crianças, enquanto era criança, obviamente, e adorei lê-los. Foi uma autora que já me tinha acompanhado antes no meu percurso escolar e tem sido sempre uma óptima experiência que achei por bem repetir.
Escolhi este poema “porque” mal o li despertou em mim um sentimento de semelhança e, embora o mais provável seja que o significado que o sujeito poético lhe atribui seja totalmente diferente daquele que eu atribuo ao poema, senti uma proximidade que me levou a escolhe-lo, analisa-lo e declama-lo.
Análise formal:
-nº de estrofes: 4
-versos: uma quadra e três tercetos
-rima: pura, rica, interpolada.
-métrica: oscila entre 10 e 12 sílabas, decassílabos e alexandrinos.
-figuras de estilo: metáfora
“Porque os outros são os túmulos caiados”
“E os seus gestos dão sempre dividendo.“
“Porque os outros vão à sombra dos abrigos
E tu vais de mãos dadas com os perigos.”
Análise do conteúdo:
Na minha opinião esta poema ou é um apelo do sujeito poético ao povo em geral para que não se entregue à falsidade, à corrupção, à busca do caminho simplesmente mais fácil, pois não sugere nenhum “receptor” concreto ou então é uma mensagem para um sujeito concreto desconhecido, uma espécie de dedicatória em que justifica a razão pela qual o/a eleva a um nível acima de todos os outros que os rodeiam.
Já que este poema foi escrito em 1958, ano em que Humberto Delgado se candidatou a presidente da republica e perdeu por fraude eleitoral, e a poeta era uma forte activista contra o estado novo penso que este poema pode ser dedicado a Humberto Delgado como a quaisquer outros que lutaram pelo poder Salazarista.
Tirado do contexto político-social em que está inserido, o poema transforma-se numa espécie de opinião e celebração daqueles que a seguem.
O “porque”, aparecendo repetidamente, mostra ser uma marca de justificação mas também de continuidade e regularidade, os porquês que o sujeito poético apresenta sugerem, para além do elemento de sinceridade profunda, um “ódio” à hipocrisia, à mentira, à cobardia, à corrupção e admira quem as combate, evita e opõe com “acções mais nobres”.
O sujeito poético valoriza a frontalidade e a coragem de quem é quem é sem medos, a coragem de assumir os erros e dizer a verdade sem recear as inconveniências, a integridade e a lealdade para com valores verdadeiros e fixos;
Valoriza alguém que arrisca, e arrisca com todo o seu coração e todo o seu ser, sem precisar de ser calculista ou ter garantias.
Para mim este poema descreve a maneira certa de agir e proteger aquilo em que acreditamos, independentemente do que isso seja.